Doenças psiquiátricas

Parte II
Eugênio Goulart - redacao@revistaecologico.com.br
Viés Médico na literatura de Guimarães Rosa
Edição 112 - Publicado em: 09/10/2018

Em livro publicado posteriormente, com o estranho título de “Primeiras Estórias”, o conto “Soroco, sua mãe, sua filha” é todo dedicado a transtornos psiquiátricos. Em apenas quatro páginas densas e de extrema poesia, Guimarães Rosa escreveu sobre a reação de uma população rural em relação à loucura, buscando nos detalhes da cena, como a “chirimia” e o “canto desatinado” da mãe e filha do Soroco, uma correta interpretação da insanidade mental:

Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.

[...] A filha - a moça - tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom, nem no se-dizer das palavras - o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração.

O Hospício de Barbacena, ou o nome oficial menos conhecido, Hospital Colônia de Barbacena, foi criado em 1903, seguindo o modelo vigente nessa época para o tratamento de doentes mentais. Recebia pacientes de várias regiões do Brasil, que chegavam a Barbacena por meio da ferrovia. De fato existia o “Trem dos Doidos”, que eram vagões especiais que conduziam pessoas até o hospício, as quais, em verdade, estavam condenadas à prisão perpétua.

Cordisburgo faz parte dessa história, já que situada às margens da estrada de ferro. Fatos verídicos, que fizeram parte da infância do menino João, são relatados no conto “Soroco, sua mãe, sua filha”. Detalhes do texto correspondem exatamente ao pátio de manobra das marias-fumaças em Cordisburgo. Da janela de sua casa via o movimento da estação ferroviária, um de seus passatempos favoritos. E o “trem do sertão”, que vinha do Norte de Minas, passava na hora citada no texto adiante. Isto é, quando não atrasava, o que não era evento raro:

Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12:45h.

Os pacientes ficavam internados no manicômio em péssimas condições sanitárias e de habitação, aglomerados em grandes cômodos, sem direito à privacidade e isolados de seus familiares. Era comum o uso de eletrochoques e lobotomias, às vezes como medida punitiva. Estima-se que sessenta mil internados morreram nos cerca de oitenta anos em que a instituição trabalhou nesses moldes. Um fato histórico que merece registro é que o Hospício de Barbacena era o grande fornecedor de cadáveres para as aulas de anatomia das faculdades de Medicina.

A partir da década de 1980 foram realizadas mudanças drásticas, e os métodos terapêuticos foram humanizados, com os pacientes recebendo tratamento melhor. Hoje o local foi transformado em Museu da Loucura, com fotos, textos, documentos e os instrumentos cirúrgicos utilizados, como depoimento de um passado de tragédias na história da Medicina.

Em outro texto do livro “Primeiras estórias”, no conto “Darandina”, um indivíduo subitamente escala a palmeira de uma praça urbana, situada defronte a um hospício, e inicia longo discurso. O narrador do conto é interno de plantão no manicômio, e a primeira observação já denota a avaliação médica do provável paciente: - Aspecto e facies nada anormais, mesmo a forma e conteúdo da elocução e a princípio denotando fundo mental razoável [...]

Segue a explicação desse ato insólito, dada por outro interno de plantão, relatando a argumentação do homem empalmeirado:

- “Disse que era são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar, voluntário: assim, quando a coisa se varresse de infernal a pior, estaria já garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que, à maioria cá fora, viriam a fazer falta...”

Na sequência, chegam os psiquiatras, acompanhados de seus ajudantes, os enfermeiros e os padioleiros:

Traziam a camisa-de-força. Fitava-se o nosso homem empalmeirado. E o dr. Diretor, dono: - “Há de ser nada!”

Contestando-o, diametral, o professor Dartanhã, de contrária banda aportado: - “Psicose paranóide hebe- frênica, dementia praecox, se vejo claro!” [...]

O diagnóstico psiquiátrico é assim detalhado de imediato, logo no início do conto. “Hebefrênico” significa adolescente esquizofrênico e dementia praecox pode acompanhar um caso de psicose paranoide. Mais adiante, no mesmo texto, outra frase com termos técnicos: Abusava de nossa paciência - um catatônico-hebefrênico - em estereotipia de atitude. Catatônico referia-se ao estado do paciente quando internado, ausente, imóvel e “rijo por incontável tempo”.

No conto “A Menina de Lá”, do livro “Primeiras estórias”, também um possível quadro de esquizofrenia infantil, já que Nhinhinha era de “lá”, falava palavras incompreensíveis, “pelo esquisito do juízo”. Tranquila, às vezes suspirosa, vivia em outro mundo: Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios.

Ainda no livro “Primeiras Estórias”, o conto “A terceira margem do rio” gerou muitos textos interpretativos, que abordam, entre vários aspectos, os caminhos inexplicáveis que muitas vezes a mente humana toma por opção. Um quieto pai de família, morando beira-rio com a mulher e três filhos, resolve, sem motivos e sem maiores explicações, encomendar uma pequena canoa. Quando pronta, sem sequer se despedir, parte para viver apoitado no meio do rio. O criativo título do conto talvez possa dar uma indicação para esclarecer o que parece ser inexplicável:

Nosso pai não voltou. Ele nem tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.

No conto “Hipotrélico”, do livro Tutaméia, há o relato de um paciente psicopata, que cria um interessante neologismo: - “Enxergo umas pirilâmpsias...” - dizia outro, de suas alucinações visuais. Como última citação de problemas psiquiátricos, no conto “Meu tio o Iauaretê”, do livro póstumo “Estas Estórias”, é relatado que o personagem Siruvéio ficava acorrentado a uma árvore, o que era comum quando não havia o que fazer, por falta de recursos, e se o paciente sofresse crises de agressividade:

Mulher muito boa, chamava Maria Quirinéia. Marido dela era doido, seo Siruvéio, vivia seguro com corrente pesada. Marido falava bobagem, em noite de lua incerta ele gritava bobagem, gritava, nheengava [...].

Na próxima edição, confira a primeira parte do capítulo que trata de menções a doenças como malária, sífilis e Doença de Chagas na obra de Guimarães Rosa.


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