O paciente terminal

Bia Fonte Nova - redacao@revistaecologico.com.br
Páginas Verdes
Edição 126 - Publicado em: 17/07/2020

Poucos brasileiros têm tanta credibilidade quanto ele no aclamado cenário do cinema internacional. Diretor de sucessos como Cidade de Deus, filme de maior bilheteria nacional em 2002, ele segue em trajetória ascendente. E, em seu mais recente filme, Dois Papas, conseguiu reunir Anthony Hopkins e Jonathan Pryce, dois atores consagrados em Hollywood.

Aos 64 anos, o paulistano Fernando Meirelles conquista mais e mais fãs, sobretudo agora com a presença de seus filmes em plataformas de streaming, como a Netflix. Dias antes da cerimônia de entrega do Oscar’2019, ele esteve no programa “Roda Viva”, da TV Cultura. Carismático, mostrou-se bem mais entusiasmado em falar sobre crise climática do que em estimar as chances que teria na disputa pela cobiçada estatueta dourada.

Meirelles parecia mesmo adivinhar o que viria. Dois Papas não levou nenhum dos três prêmios a que concorria. Mas, certamente, continuará arrebatando admiradores graças à mensagem de diálogo e de tolerância que permeia todo o filme. Tudo a ver e necessário ao Brasil atual

“Procurei humanizar ao máximo a relação entre os dois papas. Quis fazer um filme surpreendentemente leve e humano. Acho que consegui. A mensagem que procurei deixar é: vamos ouvir o outro, ser mais tolerantes.”

A Ecológico reproduz, a seguir, os principais trechos do bate-papo de Meirelles com os jornalistas. E mostra que, felizmente, o cineasta – vencedor do Prêmio Hugo Werneck de Sustentabilidade & Amor à atureza’2016, na categoria Destaque Nacional – se mantém fiel ao compromisso de ampliar a discussão sobre causas ambientais urgentes, levando para as telas temas de grande repercussão e importância.

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

“O meu próximo filme é sobre a crise do clima. E será um teen movie (filme para adolescentes). Vou mostrar vários personagens, de diferentes países, na faixa dos 14, 15 anos que, assim como a Greta Thunberg, sentem que os adultos estão roubando o seu futuro. Não será um filme para ganhar Oscar, será um filme militante. Algo para viralizar entre a molecada.” Confira:

Dois Papas

“O poder do diálogo e a tolerância são os temas centrais do filme. Sou um grande fã do Papa Francisco, por seu carisma e pelo lado pop star que ele tem. Depois que ele publicou a Encíclica Laudato Si’, sobre a nossa Casa Comum, eu falei: ‘Esse é o cara’.”

“O filme retrata dois homens que discordam de absolutamente tudo, mas que ouvem o que o outro tem a dizer e buscam, assim, encontrar um chão comum.”

“Procurei humanizar ao máximo a relação entre os dois. Quis fazer um filme surpreendentemente leve e humano. Acho que consegui. E a mensagem que procurei deixar é: vamos ouvir o outro, ser mais tolerantes.”

Pontes

“Também admiro o Papa Francisco pela atenção que ele dá à desigualdade no mundo. Vivemos numa sociedade distópica e ele é um cara que está, o tempo inteiro, tentando construir pontes, enquanto a tendência, em geral, é erguer muros. Ele quer construir pontes entre religiões, sociedades e nações. Acho isso bacana.”

Polarização

“O mundo está completamente polarizado. Parece até que há algumas circunstâncias cósmicas (agindo) aqui. As famílias, o mundo inteiro, tudo está polarizado. E, com a Igreja, isso não é diferente.”

Confissão

“Fazer esse filme me levou a rever alguns conceitos. Passei a achar a confissão algo genial, incrível. Hoje, as pessoas não sentem culpa por nada, são prepotentes. E o exercício de se confessar te obriga a rever o modo de agir, a refletir sobre situações em que está ‘pisando na bola’.”

“Muito da intolerância que vivenciamos hoje se deve ao fato de todo mundo se sentir o dono da verdade. Ando com vontade de encontrar um padre legal para ser o meu confessor. Assim, em vez de pagar terapeuta, posso me confessar. E ainda será de graça.”

Algo maior

“Além de rever minha visão sobre confissão, passei também a ter uns insights. Continuo agnóstico, mas comecei a acreditar que existe algo (maior) além de nós. A vida e a natureza são uma maravilha, uma bênção. Não surgiram do nada, existe uma lógica no universo inteiro.”

“Tenho total consciência da minha insignificância. Sou uma merdinha de nada, vivendo um instante (neste planeta). Mas sei que estou conectado a algo que é muito grande; tem de haver uma lógica nisso.”

Erro

“Sou totalmente favorável ao erro; é ele que nos leva pra frente. Na natureza também é assim. Uma mutação ou um erro em um padrão pode levar à evolução, assegurar a sobrevivência de uma espécie. Há árvores das quais as sementes caem e só germinam depois de 40 dias. Mas pode ser que algumas sementes caiam e só germinem mais de três meses depois. Se houver um atraso no ciclo da chuva, a semente ‘errada’ é que vingará, garantirá o fruto.”

“Meus filmes têm muito erro. Detesto a certeza, a segurança. É claro que não erro intencionalmente, mas prezo os meus erros. Se você não admite o erro e não faz uma autocrítica, não evolui.”

Direita x esquerda

“Gosto do bom senso, independentemente dessa questão de ser de direita ou de esquerda. Antes de votar em alguém, penso em três coisas: educação, meio ambiente e cultura. E, no atual governo, essas três áreas têm se mostrado completamente desastrosas.”

“Reconheço que a economia está começando a funcionar. Portanto, não vou radicalizar e dizer que tudo (nesse governo) é horrível. Mas, não se constrói um país só com a economia. Temos de pensar no futuro, preparar a próxima geração, preservar as praias, mares e rios. Não se pode pensar um país para um mandato apenas. Mas esse governo não parece pensar a longo prazo.”

Cardume

“Sou contra qualquer discurso ideológico: seja na política, no esporte ou na religião. É preciso superar o chamado ‘modo cardume’ e, assim, evitar fazer coisas que, normalmente, você não faria sozinho. Em certo ponto, as redes sociais favorecem esse comportamento: a pessoa age anonimamente e tende a se juntar ao ‘cardume’.”

Futuro

“Vivo hoje como um paciente terminal. Já não vejo muito futuro para mim nem para os meus netos, que são pequenos. Acho que daqui a 10 anos a vida de todos nós estará muito ruim.”

GELEIRA PORTAGE, no Alaska: o aquecimento global já a reduziu em cinco geleiras menores e separadas. Foto: GREENPEACE / ROBERT VISSER
GELEIRA PORTAGE, no Alaska: o aquecimento global já a reduziu em cinco geleiras menores e separadas. Foto: GREENPEACE / ROBERT VISSER

Crise climática

“Quem fala em clima já ganha o meu voto (risos). Tanto que, nas últimas eleições, apoiei a Rede Sustentabilidade e a Marina (Silva), mesmo discordando de algumas questões. Apoiei porque sei que a Marina realmente entende que a crise climática pode nos destruir.”

Clima e juventude

“O meu próximo filme é sobre a crise do clima. E será um teen movie (filme para adolescentes). Vou mostrar vários personagens, de diferentes países, na faixa dos 14, 15 anos que, assim como a Greta Thunberg, sentem que os adultos estão roubando o seu futuro.”

“Os vilões desse filme, portanto, somos todos nós que temos mais de 30, 35 anos. E a molecada de hoje se vê diante do dever de tentar salvar a própria pele e o planeta. Espero que seja um blockbuster e ‘bombe’ entre os jovens. Não será um filme para ganhar Oscar, será um filme militante. Algo para viralizar entre a molecada.”

Sonho

“Quero levar Grande Sertão: Veredas para o cinema. O Guel Arraes (cineasta e diretor) já está fazendo uma adaptação mais livre e ousada. Minha ideia é fazer algo mais clássico, mergulhar na paisagem, mostrar as veredas de Minas. Mesmo com o filme do Guel, acredito que terei o meu espaço. Esse é o meu grande sonho.”


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